A memória é uma coisa tramada. Sabe-se como começa, não se sabe como acaba.
A mim, por exemplo, a bosta de cavalo traz-me à memória a Zica.
Sempre que passa por mim um binómio hipotécnico da GNR acabado de almoçar, e a besta larga lastro, não torço o nariz nem ponho um ar enjoado. Não, inspiro fundo.
Tão fundo que vou parar muitos anos atrás, quando montava a cavalo nos cavalos da GNR. Às terças e quintas era pela Académica, às segundas, quartas, sextas e sábados, pela Mocidade, o que quer que isso fosse. Era eu, a Zica, e o Paulo Ferro. Fazíamos uma espécie de ménage à trois cuja soma das idades mal passava dos trinta. A Zica enchia-me as medidas, e eu ansiava por mostrar-lho armando-me aos cucos em cima da montada. Mas não tinha hipóteses. O Paulo Ferro, para além de ser o meu melhor amigo, era o maior do bocado, entendendo-se por bocado o planeta. Tínhamos acabado de chegar a Coimbra, eu do meu paraíso, ele do dele, que era Lourenço Marques, e o tipo não era muito bem visto. Acabava as frases todas em «né», e dizia coisas esquisitíssimas como «maning nice» (até hoje não sei como se escreve «maning»). A nossa amizade começou desinteressadamente quando ele caiu de gripe gripado e eu lhe levava o Tintin encadernado para o ajudar a passar a borrasca. Foi um bom investimento, apostar assim no pária da turma, porque, recomposto das febres, em breve conquistou os corações da malta numa aula de Geografia, e eu fiquei o melhor amigo do novo herói. A verdade é que havia uma estagiária que víamos e revíamos no nosso cinema paraíso, uma coisa de sonho que usava uma mini-saia impensável. No primeiro dia em que lhe calhou dar aula, o Paulo Ferro, insuspeito no seu ar de totó e sotaque pré-maputo, perguntou-lhe onde é que era uma terra qualquer de que não sabia o nome, só que era maning a norte, ou no Alasca, ou na Sibéria, ou talvez na Gronelândia, ou seria Islândia sim parece que acabava em -lândia. O certo é que a boa da estagiária tão boa que boa era foi apontando para cima com o ponteiro aqui? não mais acima aqui? não mais acima aqui? não mais acima e nós, naquele dia, apaixonámo-nos pela Geografia e conhecemos territórios setentrionais insuspeitados que nos marcaram para sempre até hoje, e falo por todos. A estagiária, claro, levou nota 20, senão do orientador, pelo menos de nós trinta. Ora o Paulo Ferro, além de melhor amigo do yours truly, especialista em Geografia Humana, e cavaleiro precoce, fazia ginástica desportiva e, adivinhem lá, também nisso era o maior. Treinava no cavalo de arções, e quando chegava ao cavalo de volteio, fazia tudo a que tinha direito. Por fim, rematava o espectáculo pondo-se de pé sobre o dorso do bicho e saltando para o solo em mortal à rectaguarda. E repetia. Eu também me sentia, verdade seja dita, perfeitamente capaz de dar o mortal para trás com a maior das facilidades, só que sabia que seria o último que daria em vida, por isso evitava. Não sei, talvez suspeitasse não ter ainda chegado a hora de dar a vida por uma mulher, nem mesmo pela Zica. Contentava-me, assim, em rodar 360º lá em cima, andar de cócoras sobre o dorso, ou montar com o cavalo a galope, depois de acertar o passo com o animal. (Também desmontei muitas vezes a galope, mas nem sempre de forma planeada, e duma certa vez directamente contra a parede do picadeiro.)
Tudo isto para dizer que a Zica, nunca tendo, para ser honesto, manifestado qualquer preferência pelo Paulo Ferro em detrimento de mim próprio, procederia assim seguramente por mera delicadeza.
E tudo isto ainda para dizer que a memória é uma coisa tramada, que se sabe como começa, não se sabe como acaba, em que uma coisa malcheirosa como a bosta de cavalo nos pode evocar uma memória tão perfumada como a da Zica, ou os northern territories dos confins da Maninglândia.
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