terça-feira, 2 de dezembro de 2008

O Bom e o Bonito

Na voragem consumista deste mundo de palavra fácil, mas quase nunca sensata, as melhores palavras sofrem uma erosão injusta e indevida. A mais paradigmática é «caridade», que tardamos a dissociar de chás de dondocas.
Outra é «bom». De cada vez que alguém a diz vem, na melhor das hipóteses, à ideia um escuteiro apostado em atravessar a velhinha, queira ela ou não. «Bom» é ingénuo, fraco, ou lunático.
Assim, Cristo, que goza apesar de tudo de uma tolerância nos meios fracturantes de que não desfruta o povo que é suposto representá-Lo , é apresentado como bom. Leia-se, bom rapaz. Com umas ideias boas. Bem-intencionado. Um bom pateta.
Estes «sábios» autoexcluem-se da verdade, que é reservada aos «pequeninos». Do alto das suas torres de marfim, decretam todas as denotações e conotações do «bom» e passam ao lado de tudo o que é bonito.
Neste mundo onde o caos parece sempre mais fácil e provável, onde as leis da entropia decretam que é mais plausível um copo fazer-se em cacos que os cacos se organizarem em copo, a beleza é a promessa da harmonia suprema. Está-nos nos genes, porque quem passou a pensar, e assim largou a pele de macaco, exige um sentido, e bom. Não vale a pena pensar, se é para sofrer com a inexorabilidade de um mundo feio e boçal. Tem de haver mais qualquer coisa. E essa qualquer coisa tem de transcender o que os olhos vêem e os ouvidos ouvem. Tem de ser bela.
Belo é o Sermão da Montanha. Bem-aventurados os pobres. Belo é o Magnificat. Derrubou os poderosos dos seus tronos e aos ricos despediu de mãos vazias. Belo é o discurso para a adúltera. Quem estiver sem pecado, atire a primeira pedra. Belo é olhar para a dureza do Homem, quatro mil anos apenas depois de inventar a escrita, contemplar a fealdade do coração do humano que ontem era hominídeo, e ver uma semente de beleza, e esperar que cresça. Belo é acreditar no impossível, e exigi-lo realistamente.
Belo é ser louco. Poderiam ser assim tão loucos os quasi-analfabetos que inventaram as escrituras a que viemos a chamar sagradas? De onde retirariam tamanha inspiração? Como, sozinhos, veriam a bela no monstro? Como divisariam sozinhos tamanhos amanhãs cantantes? Como se elevariam por si sós, sem ajuda do alto, Salomão e os outros poetas dos Salmos, que nos libertam das nossas cadeias humanas? Escreveste isso sozinho, ou pediste ajuda ao teu irmão mais velho?
Para falar assim de Deus, só Deus. Ainda que pelos nossos lábios, e pela nossa pena. Chama-nos à bondade porque nos chama à beleza. Diz-nos que é possível, contra tudo o que nos afirma este mundo vendido, acomodado, prostituído, desanimado, descrente, céptico, velho, adiposo, cansado, míope, farto, anafado, alienado. E para o provar, porque não nos basta ver a Beleza, ainda exigimos um sinal palpável, sujeita-se à fealdade última de ver a Sua carne pendurada ignobilmente num madeiro, porque não suporta contemplar sozinho a Beleza que criou. Faz tudo por nos puxar para cima. Onde tudo é bom, porque tudo é belo. Hoje vemos como por um espelho. Um dia veremos face a face. Vai ser bom. Vai ser insuportavelmente belo.

5 comentários:

cadfel disse...

Excelente Jorge! Quase ao nível de Stº Agostinho.

Jorge Ferreira Lima disse...

Let's not overreact, caro/a cadfel1. Mas obrigado na mesma...

Emocoesquenaometocam disse...

Santo Ah!Gostinho diria que o
soluço é o flato erudito. E alguns flatus - sopros - são-no de vida.
Gosto quando o Lima mostra a face da face

João Mattos e Silva disse...

Que beleza de texto para iniciar mais um dia de vida! Começa-se com outro ânimo e a certeza de que vale a pena, sempre, procurar em cada instante, o Bom e o Belo.

Jorge Ferreira Lima disse...

Obrigado, João, fico contente.